Este processo teve início com a apresentação de uma acção de nulidade do certificado complementar de protecção (CCP) português que protege o produto de combinação das substâncias activas Ezetimiba+Sinvastatina, da farmacêutica Merck Sharp and Dohme Corp. (MSD).
Coube a este Tribunal superior analisar se a concessão do referido CCP foi válida nos termos do disposto nas alíneas a) e c) do artigo 3 do Regulamento (CE) n.º 469/2009 (“Regulamento”), e a decisão foi no sentido de que o referido CCP preenchia os requisitos para ser validamente registado.
I. Factos e Antecedentes
A MSD foi titular da patente base EP 0 720 599 B1 (“patente base”), entretanto caducada, a qual contém reivindicações respeitantes à Ezetimiba (reivindicação 1 e 8), à combinação da Ezetimiba e um inibidor da biossíntese do colesterol (reivindicação 9). Esta patente reivindica ainda inter alia uma combinação da Ezetimiba com a Sinvastatina (reivindicação 17).
Com base na referida patente base, a MSD obteve um CCP referente à autorização de introdução no mercado (AIM) do medicamento Adacai® (Ezetimiba), e posteriormente um CCP referente à AIM do medicamento Inegy® (combinação Ezetimiba+Sinvastatina).
Uma empresa de genéricos apresentou uma acção de declaração de nulidade do CCP da MSD para o produto de combinação Ezetimiba+Sinvastatina, alegando o não preenchimento da al. a) do art. 3.º do Regulamento.
O Tribunal da Propriedade Intelectual julgou aquela acção improcedente, pelo que não anulou o referido CCP.
A empresa de genéricos recorreu da referida sentença para o Tribunal da Relação de Lisboa, a qual confirmou, por unanimidade, a decisão de primeira instância.
II. Questões colocadas à apreciação do STJ
No recurso de revista apresentado pela empresa de genéricos, foram colocadas à apreciação do STJ essencialmente se o CCP aqui em causa é válido face aos requisitos plasmados nas alíneas a) e c) do Regulamento.
i. Artigo 3°, al. a) do Regulamento
O STJ concluiu que a combinação de substâncias activas (Ezetimiba + Sinvastatina) encontra-se protegida pela patente base nos termos da al. a) do art. 3.º do Regulamento.
Baseou este entendimento essencialmente no parágrafo 37 do acórdão do Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE) Teva/Gilead de 25/07/2018 (C-121/17) que refere que:
Com base na referida jurisprudência, o STJ concluiu que o requisito da al. a) se encontrava preenchido, já que na patente base, designadamente na reivindicação 17, aquela combinação de substância activas está expressamente prevista.
Mais considerou o STJ que se deverá excluir, para a análise do preenchimento da al. a), o critério do cerne da actividade inventiva tendo citado, para esse efeito, entre outros, os parágrafos 30-32 do acórdão do TJUE Royalty Pharma (C-650/17), proferido em 30/04/2020.
Nessa análise, o STJ também citou o acórdão do Court of Appeal de Inglaterra e do País de Gales, de 19/12/ 2019 (caso Teva UK Ltd, Accord Healthcare Ltd, Lupine Ltd, Lupine (Europe) Ltd e Generics Ltd (UK) contra Gilead Sciences, Inc.), dando especial destaque ao argumento de Lord Justice Floyd, o qual interpretou o supra referido acórdão C-121/17, do TJUE, no sentido de não se exigir que o produto represente um avanço ou um contributo técnico inovador:
“Não considero que ao usar o termo ‘abrangido pela invenção coberta por essa patente’ o tribunal pretenda referir-se ao avanço inventivo ou ao contributo técnico da patente. O tribunal opôs-se definitivamente contra a introdução desse teste. Embora não lhe seja feita menção no raciocínio do tribunal na referência neste caso, o recurso a este teste seria inconsistente com a proposta no parágrafo [37] do acórdão do tribunal. Este parágrafo afirma que a menção expressa da substância activa na reivindicação é suficiente. A menção expressa numa reivindicação não diz nada sobre o ingrediente adicionado fazer ou não parte do avanço inventivo. Além disso, tanto a opinião do Advogado-Geral Wathelet nesse caso como (desde o Segundo Acórdão) a do Advogado-Geral Hogan em Sandoz vs. Searle rejeitam liminarmente esse teste. Tudo o que tenha sido dito a este respeito do ponto de vista da norma deverá agora ser considerado como errado.”
ii. Art. 3.º, al. c) do Regulamento
O STJ também concluiu que o CCP aqui em causa preenchia o requisito plasmado na al. c) do art, 3.º do Regulamento CCP, ou seja, o requisito de que «[o] produto não [tenha] sido já objecto de um certificado».
Quanto a este ponto, o STJ concluiu que «Entendendo-se, como entendemos, que a combinação da Ezetimiba com a Sivastatina é um produto protegido pela patente de base no sentido do art. 3.º alínea a) do Regulamento (CE) n.º 469/2009, deve entrender-se as invenções cobertas pela patente de base são duas – a ezetimiba e a combinação da ezetimiba com inibidores de HMG CoA redutase, como a sinvastatina – e que, ainda que a ezetimiba tivesse sido objecto de um certificado complementar de protecção (do CCP 150), a combinação de ezetimiba com a sinvastatina podia ser objecto do certificado complementar de protecção 189.».
De salientar que este Tribunal considerou que, tendo concluído que a associação ou combinação da Ezetimiba com a Sinvastatina é um produto protegido pela patente base, no sentido da alínea a) do art. 3.º, tal determina, em substância, a resposta no sentido de que os certificados complementares de protecção 150 e 189 têm como objecto produtos diferentes, protegidos pela patente base.
O STJ baseou esta conclusão, nomeadamente, no acórdão do TJUE, proferido no caso Georgetown University/Octrooicentrum Nederlandde 12/12/2013 (C‑484/12) que refere que:
«Em circunstâncias como as do processo principal em que, com fundamento numa patente de base e numa autorização de introdução no mercado de um medicamento que consiste numa composição de vários princípios ativos, o titular da patente já obteve um certificado complementar de proteção para esta composição de princípios ativos, protegida por esta patente na aceção do artigo 3.°, alínea a), do Regulamento (CE) n.° 469/2009 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 6 de maio de 2009, relativo ao certificado complementar de proteção para os medicamentos, o artigo 3.°, alínea c), deste regulamento deve ser interpretado no sentido de que não se opõe a que esse titular obtenha igualmente um certificado complementar de proteção para um desses princípios ativos, que, considerado individualmente, está também protegido como tal pela referida patente.».
III. Conclusões:
Com base na referida análise, o STJ formulou as seguintes conclusões:
I. – O art. 3.º, alínea a), do Regulamento (CE) n.º 469/2009, de 6 de Maio de 2009, relativo ao certificado complementar de protecção para os medicamentos, deve interpretar-se no sentido de que um produto composto por vários princípios activos de efeito combinado é “protegido por uma patente de base em vigor” quando a combinação dos princípios activos que o compõem esteja expressamente mencionada nas reivindicações da patente de base ou, ainda que não esteja expressamente mencionada nas reivindicações da patente de base, quando seja implícita, mas necessariamente, visada nas reivindicações da patente de base.
II. – A combinação será implícita, mas necessariamente, visada nas reivindicações desde que preencha três requisitos cumulactivos: em primeiro lugar, a combinação de princípios activos deve corresponder à “definição funcional constante das reivindicações de uma patente”; em segundo lugar, “a combinação [de] princípios activos deve ser necessariamente abrangida, à luz da descrição e dos desenhos … , pela invenção coberta [pela patente]” e, em terceiro lugar, “cada um dos… princípios activos deve ser especificamente identificável, à luz de todos os elementos divulgados pela referida patente”.
IlI. – Em todo o caso, não é necessário que o produto resulte “de forma individualizada, enquanto composição concreta, das especificações técnicas da… patente” – é suficiente que resulte do conjunto dos elementos divulgados, considerados por um especialista na matéria, “com base nos seus conhecimentos gerais no domínio em questão”.
IV. – O art. 3.º, alínea c), do Regulamento (CE) n.º 469/2009 deve interpretar-se no sentido de que, desde que uma patente de base proteja vários produtos distintos, o titular pode, em princípio, obter vários certificados complementares de protecção relacionados com cada um de tais produtos, “desde que nomeadamente cada um deles esteja ‘protegido’ como tal por essa ‘patente de base’ na acepção do artigo 3.º, alínea a), do Regulamento n.º 469/2009, interpretado em conjugação com o seu artigo 1.º, alíneas b) e c)”.
Decisão consultável em: http://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/7ef4f01666844ea6802586cb006d52c6?OpenDocument